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É preciso falar sobre a mãe



Estamos todos sentados na sala e acima de nós, um teto que parece não ter fim. A sala está enfeitada e há uma árvore de Natal cheia de presentes em volta. Minha avó Therezinha, como sempre, esparramada no sofá de linho creme, já rindo da possível dificuldade de se levantar. Nina, minha sobrinha, que ontem tinha três anos, está assistindo a um vídeo, em um tablet maior que suas mãos. Ao lado da porta de entrada da casa, meus tios bebendo e discutindo - um defendendo o conservadorismo da direita e o outro, vestido de vermelho, enfatiza sobre o perigo do governo. Chamaram meu primo lá fora. Ele fumava um cigarro de palha com a companheira enquanto conversavam sobre a boa noite de sono que tiveram um dia antes. São quase meia-noite. Hora do amigo oculto. Em semicírculo, nos aconchegamos uns nos outros. As pernas finas do meu tio viram encosto para as crianças. Minhas primas se espremem em uma poltrona de dois lugares e minha mãe segue acariciando as mãos corpulentas, cheia de veias e macias da minha avó.


Eu, particularmente, acho bonita essa hora da noite. Na fala de cada um, enxergo o poder de transformar memória em poesia e percebo que as histórias nos curam.


É a minha vez de falar. Um nervosismo sempre toma conta do meu corpo. Levantar para ir até o centro é um esforço. Uma espécie de vergonha velada. Estou aprendendo a lidar com o silêncio de todos os olhos voltados para mim. Como será que essa família ouve a minha voz?





é preciso falar sobre a mãe.





Falei em voz alta, tentando me apossar do espaço central que eu preenchia. Olhos se abriram em um estado de comoção pela ânsia do instante. Todos ficaram em silêncio.




é preciso falar sobre a mãe.




Copos apoiados no chão. Corpos inclinados para frente.

Não havia mais ruídos.

Apenas o som das minhas palavras.




é preciso falar sobre a mãe

não só porque ela foi os meus primeiros olhos ao mundo

ou porque é do ventre dela que a humanidade se cria,

mas porque ali há uma mulher

uma psique

uma alma

uma matéria

um corpo.


é preciso falar sobre a mãe

porque há sonhos. há medos. desejos. anseios. temores. prazeres.


é preciso falar sobre a mãe

porque ela criou o mar com o corpo para que eu pudesse ser criada.

mar de água morna. confortável. do mundo, eu fui bem protegida.


enquanto, internamente, se esforçava para me fazer crescer, ela ainda caminhava e vivia.

assim, um corpo dentro de um outro corpo.


e ela, a mãe, teve de comprometer-se com a travessia de criar a mim e a si mesma.

vivenciamos a participação mística de sermos duas como uma coisa só.

eu acho que a mãe sabe, de alguma forma, que o bebê não é uma extensão dela.

mas, a gente, que nasce, não sabe.


o corpo da mãe é canção.

o ventre da mãe é nascente.

o colo da mãe é água doce.


mas, de repente, o mundo chama

e o eu precisa ganhar espaço.

não me lembro o momento em que comecei a me chamar de eu.

talvez ela lembre.


o quanto dela ainda está aqui?

o quanto meu ainda está nela?


por mais estranho que seja, as individualidades precisam se manifestar.

inaugurar o campo do novo para que uma se torne sem a outra.

para que eu possa apontar a flecha para onde quero ir e desenvolver percepções a partir dos meus próprios olhos.


ganhar espaço para existir.


mas há momentos

de vazio e solidão

de aflição e incerteza


em que eu apenas quero é retornar a sensação de estar dentro do útero da minha mãe.

no silêncio do colo

no repouso onde a densidade da matéria é incapaz de me atingir.





Cercada por um silêncio singular, ergui a cabeça e busquei os olhos de minha mãe, que deixava o oceano desaguar em seu rosto. Ela seguia sentada, olhando-me fixamente e ainda de mãos dadas com a minha avó.


Lembrei de uma caixa de fotografias antigas que havia uma foto de minha mãe com os braços abertos no vento. Ela sorria, de biquíni florido, na praia. Na outra imagem, caminhava pelas areias brancas de uma praia na Bahia.


Naquele momento, encontrei nos olhos dela e na lembrança, uma menina embarcada em seu próprio corpo.


As lágrimas agora também eram minhas.


Inspirei o ar.

Expirei.

Alonguei os ombros.

Retornei ao papel.




quem é a mãe além da mãe?


(...)”





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