para aqueles que já experienciaram a leitura
Sinto, profundamente, que preciso escrever antes de iniciar a próxima leitura.
–
Fechei o livro com encantamento na boca.
Entupida de fé, embriagada de amor e acreditando - mais ainda - na vivacidade da palavra.
Por entre as páginas, palavras-escorregas. Palavras que deslizam nossos olhos para a próxima, a próxima, próxima (...), e por aí vai…
Em cada pedaço, a fé.
Fé sem medo. Escancarada. Latente em cada vírgula.
Fé que borbulha nos verbos e dá as rédeas para a jornada de Samuel.
Um corpo revestido de lembrança
Por hora, pouso na relação mãe e filho - Mariinha e Samuel.
Os passos do filho foram acompanhados do amor pela mãe -
nutridos pela lembrança e pela fé, que Mariinha emprestava a ele.
As memórias guiavam as solas dos pés que caminhavam sem firmeza.
A sempre presente mãe, o vazio pai e a nunca vista avó.
Foram os quatro pedidos da mãe que sustentavam o corpo magro do filho: acender uma vela no santuário de Padre Cícero, na estátua de São Francisco e Santo Antônio, todas aos pés de cada santo, e procurar Niceia Rocha Vale e Manoel Vale, a avó e o pai na cidade de Candeia.
Imagino Mariinha assim:
uma senhora baixa,
mãos macias, como contado por Samuel,
olhos fundos de muita vida,
voz doce,
bondade nas palavras,
e talvez, um coração maior que o corpo.
Penso em voz alta, olhando para a janela entreaberta do quarto:
O que pode a palavra de uma mãe?
A fé de um filho?
A escuta de um filho às palavras-rotas da mãe?
A travessia de Samuel rumo às palavras ditas por Mariinha.
Uma rota com força misteriosa, que Samuel não sabe onde o levará,
mas caminha, fielmente, confiando, eternamente, na palavra-mãe.
“A solidão às vezes me dói da cabeça aos pés”
Conceição Evaristo em Canção para ninar menino grande
De forasteiro a mensageiro dos recados do céu,
Samuel percorreu a rota a fim de realizar os pedidos de Mariinha.
No caminho, esbarramos com o compromisso com a fé, a dor rasgada de um coração vazio, o grandioso desejo por amor, o encanto das vozes escutadas na cabeça do santo, a necessidade do dinheiro, o ódio de uma mulher traída, a sobrevivência de um pai quase morto, casamentos milagrosos, o canto sagrado, a morada no santo, a acolhida e cuidado de amigos… e a solidão.
O amor que Samuel recebeu da família de Chico transbordava até o limite de onde a solidão penetrava. Percebeu o esvaziamento que trazia no peito. O passado irrecuperável tocado no vazio da eterna ausência. Falta de amor, colo quente e uma família sua. Saudades do amor-casa.
Aprendera tanto sobre amor com Mariinha que a sua ausência demarcava a falta dele.
O que pode a Voz do amor que Canta?
A cabeça faz eco no corpo
Pai e filho fizeram casa no mesmo corpo-santo.
Manoel vivia no corpo.
Samuel na cabeça.
Separados.
Na construção da estátua, não foi possível colar as partes.
A metros de distância, residiam repartidos: a cabeça e o corpo.
Pai e filho.
Corpo criado longe do corpo.
Corpo do santo sem cabeça.
Cabeça do santo sem corpo.
Filho sem pai.
Pai distante do filho.
A sua forma, a fantasia misturou-se com a matéria,
que manifestava a distância entre corpos planejados a viverem próximos.
É preciso ouvir o Canto.
Voz com V maiúsculo.
Canto com C maiúsculo.
Há algo de belo na busca da Voz que Canta.
O desejo de vida.
A Voz Canta pela memória e esperança.
Rosário, a guardiã das belezas ancestrais.
A rota e a redescoberta ao amor.
Assim como as mulheres rezadeiras,
o mensageiro do santo também busca "a única força que dissolve e recria o tempo", o amor.
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